Encontrei no blog da Martha Medeiros, esta reprodução de uma carta. Feita em homenagem ao pai, o ator Fernando Torres, foi escrita pela filha, Fernanda.
Veio a calhar, já que ando meio sem muita vontade de falar, escrever... Parece que o mundo anda de cabeça pra baixo, é um baque atrás do outro. Acho que é hora de refletir... O que faço de PRÁTICO, pra mudar isso??
Minha vontade bate de frente com as limitações e dentro do meu mundinho, procuro uma solução... O futuro também pertence a mim, a todos nós.
No meio de tantos atos de desamor, falta de compaixão, desrespeito e uma base familiar completamente desestruturada, pela tal modernidade que tudo permite, nas palavras de despedida desta filha, encontro o amor, puro e simples... Talvez o único remédio, pro caos em que vivemos.
Achei lindo, emocionante... Tenho que dividir com todos vocês, meus amigos.
Daqui a pouco volto. Assim que estiver mais animada... Ou melhor, menos revoltada.
Carol
A DANÇA DA MORTE
"A peça Seria Cômico Se Não Fosse Sério, de Friedrich Dürrenmatt, foi o melhor espetáculo teatral que meus pais produziram em anos e anos de parceria. Baseada na Dança da Morte, do dramaturgo sueco August Strindberg, ela se passa no início do século passado e conta a história de um general aposentado, Edgar, e sua esposa, Alice, que vivem às turras, isolados em um farol. Um dia, o casal recebe a visita de um primo mafioso, que se esconde com eles no alto da torre. Depois de desassossegar a vida dos dois por doze vertiginosos rounds, o primo cafajeste se manda, devolvendo o par à sua mais derradeira solidão.
Jamais vou esquecer meu pai com barbas de Matusalém, vestido de general da I Guerra, dançando furiosamente a Dança dos Boiardos. Era sensacional. Lá pelo fim do espetáculo, Edgar se levantava louco, altivo, e dizia:
– Agora vou dançar a Dança dos Boiardos!
E começava uma coreografia ensandecida, meio russa, meio gaúcha, pulando em torno de uma espada no chão. Querendo exibir vigor ao primo escroque da esposa, Edgar dança até o limite de suas forças e acaba sofrendo um AVC. A peça termina com Edgar numa cadeira, seqüelado pelo derrame, e Alice arrumando a desordem da casa por causa da passagem do primo.
Era de uma beleza terrível, cortante, teatro com T maiúsculo. Quem viu sabe. Como com teatro não se brinca, havia ali o prenúncio de algo que viria a acontecer com meus pais anos depois, só que de maneira muito mais doce, amorosa e redentora. Minha mãe cuidaria dele, e ele dela; mais ela dele, por problemas de saúde, no terço final de seus 57 anos de casados. Uma amiga gostava de dizer que meu pai ainda estava vivo porque minha mãe e ele queriam assim.
Em 1986 meu pai sofreu um primeiro derrame, não detectado, durante a representação da tragédia grega Fedra. Ele esqueceu o texto em cena e, como a neurologia ainda engatinhava, levamos anos para entender que não era um problema psíquico, mas físico, o início de sua dança da morte, que levou vinte anos para acontecer.
Meu pai é um mistério tão grande para mim que fica difícil falar dele numa crônica. Mas, como estou chegando à conclusão de que todo pai é um mistério para os filhos, ao contrário das mães, que são desabridas, arrisco aqui um modesto perfil.
Dono de um humor cortante, que seria cômico se não fosse sério, doce e sádico, careta e maluco, velho e criança, meu pai foi produtor, diretor e ator, um homem dedicado a todas as facetas do teatro. Teve coragem de largar a medicina, enfrentando o pai médico e político dos tempos da política do café-com-leite, para fazer parte dessa profissão etérea. Dizem que o estalo se deu no trote da faculdade, quando em plena Cinelândia ele gritou: 'Fiat Lux!'. E as luzes da praça se acenderam numa sincronicidade cósmica. Foi ali, logo de cara, que perdemos um médico e ganhamos um diretor. Devo a ele toda a minha curiosidade científica, devo a ele dizer o que penso, devo a ele o cinema, a infância, Veneza, Machu Picchu, Buenos Aires e as montanhas russas. Devo ao meu pai tudo o que sou que não é ser atriz, e certamente devo ao meu pai a promessa de alguma serenidade diante da velhice e da morte.
Como ele adoeceu há muito tempo, as lembranças do homem de teatro, do pai jovem e doidão, do barbudo enraivecido pela censura de Calabar se misturam fortemente com as do Fernando de saúde frágil com quem convivi nos últimos tempos. É muito difícil para um filho lidar com a doença de seu pai. Por isso, gostaria de agradecer às muitas pessoas que nos ajudaram nesse período, em especial à Roberta, sua fisioterapeuta, aos enfermeiros Jorge e Cristiano e, acima de todos, à doutora Lúcia Braga, do Hospital Sarah Kubitscheck, que deu ao meu pai cinco, seis, dez anos a mais de vida, libertando-o dos especialistas em doenças, cortando catorze medicamentos e colocando no lugar o teatro, os barcos, o pingue-pongue e a vida; e à doutora Claudia Burlá, geriatra, especialização cuja profundidade só fui entender na noite em que meu pai morreu, em casa, conosco em torno dele, e com ela. Sem tubos, sem CTIs, sem prolongadores artificiais de respiração ou batimentos cardíacos. Foi ela que mandou chamar a mim e ao meu irmão, foi ela quem nos ajudou. A morte do meu pai foi uma experiência tão caseira, humana, pacífica e acolhedora, apesar do sofrimento e da dor, que me fez por alguns segundos achar que esse absurdo que é a morte, afinal de contas, pode fazer parte da vida.
Um salva de palmas para ele. Foi um guerreiro discreto, forte e corajoso. Espero conseguir ser assim quando chegar a hora de eu dançar a minha Dança dos Boiardos."
(Fernanda Torres)
3 comentários:
Engraçado como "mais animada" e "menos revoltada" parecem até opostos, mas são só ponteiros num relógio.
Confesso que não li o texto de baixo, mas quando estiver "menos revoltado" eu leio... hehehe... só pra constar, eu leio quando tiver mais tempo. ;D
Haha sentimentos ambivalentes..
Amor n li o texto abaixo tb..
Estou sem pc...
Qaundo td se resolver eu leio.
Te esper ono meu, respondi tudinho!
Que maravilha de texto, li cada linha viajando ao lado da Fernandinha, acho que passei a admirar ela um pouco mais, talvez por ter sentimentos tão parecidos com os que tenho com meu velho pai, aos 90 e tantos anos, querendo a todo custo "não dar trabalho", mantendo sua honradez e honestidade como sempre.
Que bom poder falar assim de nosso pai.
Lindo texto, fez meu dia muito melhor.
Beijos e deixa estar que nessa vida tudo se ajeita, amanhã é sempre um dia diferente e os problemas de hoje já não serão tão importantes, demorei mas aprendi isso.
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